A minha escola (nem um pouco) querida

Gabriel Lima
8 min readApr 16, 2021

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Todas terça feira, alternávamos o hino nacional com o hino do colégio, e este, apesar de brega, certamente leva uma parcela dos meus amigos à nostalgia. Além do hino, existia também uma música que vestia a instituição com um propósito interessante, de ser uma escola da vida, onde se aprende mais que somar, dividir e multiplicar. O colégio, nesta música se propõe a ser mais do que formador de alunos preparados para provas, ensinando também sobre a vida, se colocando como o lugar onde se aprende a amar. Um discurso bonito, uma música divertida. Do tipo que você já esbarrou em algum lugar.

Foram mais de dez anos nessa instituição e, ou eu fui realmente um aluno ruim como pareciam me tratar, com severas alucinações sobre a realidade dos fatos e lembranças ainda mais débeis, ou esse momento de ensinar sobre a vida nunca aconteceu como proposto. Tento, mas não consigo me lembrar de um único momento em que houve alguma preocupação genuína, dentro do projeto educativo do colégio, em ensinar algo valioso sobre a vida, formar pessoas, amar.

Não estou necessariamente falando de questões profundas sobre a vida em toda sua essência e complexidade. Embora fosse lindo e quase utópico, imaginar aprender sobre filosofia, empatia, e sobre todas as questões essenciais da condição humana pós virada do milênio, sobre as coisas que realmente forma caráter, não precisaríamos ir “tão longe” para atender os requisitos aqui. Eu não me lembro de ter aprendido nem o básico da vida pra ser um adulto. Ainda que fosse o mínimo para ser um adulto medíocre, talvez até burro. Afinal, adultos burros também precisam sobreviver e pagar contas.

Mas eu lembro sim, de muitas coisas. Lembro da nossa aula de “filosofia” ser ministrada por um professor de religião. Lembro de Tomás de Aquino, principalmente. Coincidência? Talvez. Minhas breves recordações se concentram nele e nos pré socráticos. Mas o que eu lembro bem, era desse mesmo professor, durante a aula, falar que camisinha não era o único método contraceptivo. Que ele e a esposa utilizavam um método aceito por Deus. Teoricamente mais correto. A tabelinha. Lembro como se fosse ontem.

Lembro da cantina, que mesmo após leis rigorosas no combate à má alimentação de crianças em colégios, continuava vendendo refrigerante e todo tipo de porcaria que existia em seu cardápio. Lembro bem de reclamações constantes também referentes aos preços. A dona da cantina era professora de matemática. Extremamente rigorosa, de pouca conversa. Economizava palavras e falava com os olhos. Os alunos comparavam seu regime com uma espécie de militarismo matemático/cristão. Ah ela era cristã fervorosa. Só começava a aula depois de que todos os alunos levantassem para rezar com ela. Amém.

Lembro também de ter sido suspenso por não dedurar alguns amigos, que no auge da rebeldia adolescente pixaram o colégio. Entre outras bagunças comuns à idade. No final das contas suspenderam um grupo de 15 pessoas ou mais pois elas não quiseram dedurar os 2 ou 3 autores das pixações. Então suspende logo todo mundo, proíbe de participar da olimpíada de esportes, faz eles passarem por um vexame, na frente de todo mundo. Ah sem dúvida a gente aprendeu sobre repressão e vergonha. Inclusive, fui comunicado da miha suspensão por um amigo, por telefone. No fatídico dia estava fora da cidade e faltei aula. Nunca me deram oportunidade de falar sobre o ocorrido. Voltei suspenso e acabou.

Essas decisões e diretrizes vinham diretamente do SOE que deveria significar Serviço de Orientação Educacional, mas pros alunos, silicificava “deu ruim”. Existia a possibilidade de visitar o SOE para algo que não fosse problema? Se existia, aí eu não me recordo. Ainda novinho, visitei a direção por livre e espontânea vontade duas vezes, uma para tentar inscrever o colégio na Copa Fox Kids, sonho de toda criança que jogava futebol na época, e outra para propor uma feira de troca e venda de livros, brinquedos.

Se essas visitas não foram para resolver problemas disciplinares, também não serviram para dar qualquer outra utilidade aos encontros. Enquanto digitava me lembrei que só voltaria nessa sala por livre e espontânea vontade uma única vez futuramente, também para recuperar uma bola de um amigo, que estava confiscada por meses, já que havíamos utilizado indevidamente a quadro para jogar futsal durante o intervalo do almoço. Aparentemente isso era bem proibido.

Mas nesse colégio tive minha primeira participação em uma revolução, um enorme protesto, incluindo todos os alunos do ensino médio. O protesto era contra a obrigação do tênis do uniforme ser obrigatoriamente preto ou branco. Sem detalhes, sem cores. A revolta geral se deu principalmente pelo colégio ter decidido, de repente, que alunos em não conformidade com o monocromatismo seriam advertidos e até mesmo barrados na porta de entrada.

O protesto uniu, deu esperanças, mobilizou ações, fotos, foi incrível e nossa comissão chegou até a ser ouvida pela Nossa Senhora Santa Diretora Madre De Seja Lá Qual Seu Nome, que apenas respondeu que esse termo estava no contrato e que nada seria feito. É tênis branco ou preto. Fim de conversa. Aqui na terra não-tão-santa, chamamos isso de “foda-se”. Foi isso. Ela mandou um claro e belo foda-se, adequem-se ou vão embora. Afinal quem mudaria de colégio por causa de um tênis?

O tempo passou, me formei em comunicação, fiz um mestrado em gestão da economia criativa e, apesar da relação conturbada, eu decidi voltar para este colégio. Montei um projeto de marca, comunicação e conteúdo e pedi uma reunião, uma oportunidade de diálogo. Queria falar para esse colégio sobre como os jovens de hoje pensam, sobre como o mundo mudou e sobre como a marca deste colégio estava defasada em todos os sentidos. É claro que eu não esperava que uma instituição católica deixasse de ser careta do dia pra noite, mas se a própria igreja ensaia há algum tempo mudanças para se manter atualizada e interessante para o novo mundo, como este colégio poderia negar o novo?

Eu sabia que em sua estrutura não existia nenhuma autoridade, ou nada perto disso, cuidado da marca e da comunicação do Colégio. Sabia também que outras instituições menores estavam surgindo, com discursos mais próximos às realidades das novas gerações. Portanto, meu projeto, montado pensando exclusivamente para o colégio, poderia ser muito útil. Ainda que não contratassem minha agência, ainda que servisse como uma breve consultoria ou opinião. Ainda que a maior parte dele fosse descartada. Afinal, passei mais de uma década lá, conheço equipes, conheço a história, conheço essas paredes. E além de ser especialista na minha profissão, me animei especialmente pois gosto de pensar que devemos melhorar as instituições das quais fizemos partes e que fazem parte da nossa história.

Fui recebido por uma pessoa que nem lembrava do nosso compromisso e não entendia absolutamente nada do que eu falava. Não tinha competência para isso e, pela posição que ocupava na estrutura do colégio, provavelmente nem deveria ter. A culpa, muito possivelmente, nem era dele. Nunca recebi nenhum tipo de resposta. Fiquei chateado. Pensei em apresentar o projeto para um outro colégio, concorrente direto. Amadureci, deixei a ideia de lado.

Mas esse último capítulo apenas demonstrou o que eu já sabia. O colégio se comportou como sempre. E dessa maneira, ele ensinou muito sobre a vida mesmo. A vida tem disso tudo, toda hora. Nela a gente encontra pessoas e instituições que investem em hinos, em slogans, em discursos muito bonitos e que vendem bem. Mas investem muito pouco na inovação, no progresso, prática, no diálogo, na sustentabilidade das relações, na reflexão e na compreensão do novo; e a gente precisa tomar cuidado, porque a publicidade e a propaganda podem ser cruéis. A realidade, em muitos casos, pode ser percebida tarde demais ou pode ser considerada apenas ponto de vista.

Falo sobre realidade como ponto de vista porque o colégio sempre vendeu o seu cristianismo, a paz de cristo, a bondade, o sacrifício, os padres e irmãs, a vida em luz, Hosana nas alturas. Mas o amor cristão e os ensinamentos baseados no respeito ao próximo passaram muito longe do que eu, mesmo ateu, considerava e considero ideal para uma vida em sociedade. Estranho pensar que inclusão deveria ser um dos pilares da irmandade responsável pela administração do colégio se eu, em uma década, nunca tive um colega de classe negro. Em mais de 10 anos, nenhum colega de classe negro. Nenhum. Vale lembrar que inclusão não é ser reativo e dar desconto para quem é pobre e pediu, apenas. Apesar de estarmos falando de uma instituição de educação que deveria ter um entendimento óbvio disso, acho que vale a pena lembrar.

Mas o que eu vi e vivi, foi a malandragem, o não cumprimento de leis e normas, repressões ao diálogo, repressões aos estranhos, aos diferentes, camisinha não, tabelinha sim (Deus resolve), moralismo, falta de transparência, religião acima da ética e do bom senso. Tudo em nome de Deus e muitas vezes, com o bônus da isenção de imposto. Amém!

Ah mas eu aprendi com os anos, aprendi que existem várias formas de aprender e uma delas é vendo e vivenciando o absurdo. É entendendo que um professor que depõe contra a camisinha, em sala de aula, para jovens, não deveria ser um professor. Entendi que essa instituição nunca se preocupou em gerar reflexões construtivas. No máximo cumpria a obrigação de prestar as matérias de filosofia, sociologia e música, obrigatórias na época, muito mal prestadas, sem um terço do empenho religioso obrigatório para os alunos. Era mera obrigação.

Aprendi que do catolicismo e do cristianismo, prefiro a distância. Me indignei, me fiz ler a bíblia. Li coisas horríveis e vi essas atrocidades se repetirem no comportamento hostil desses que se acham mais santos dentro de suas igrejas. Se existe um Deus, e eu sinceramente duvido que exista um nas configurações pregadas, ele não está nessas pessoas e nessas instituições, que usam o divino como ferramenta para propagar sua hegemonia, sua hipocrisia, seu ódio contra o diferente, seus abusos morais, econômicos-financeiros e sexuais. Aliás, falando nisso, é claro que uma instituição famosa por estuprar meninos não quer falar de educação sexual. Vão falar o que?

Acima de tudo, aprendi que é um pouco triste não ter carinho algum pelo meu colégio. Infelizmente carinho passa longe dos sentimentos que tenho à instituição. Mas aprendi que essa não é a única experiência possível, como adulto tive outras maravilhosas, conheci diretores de colégio e professores incríveis, referências em suas áreas, participei de projetos junto a colégios, ajudando na condução estratégica dos negócios, no marketing e na comunicação. Estudei e estudo educação. Me tornei professor também. Aprendi que existe um outro lado, que existem pessoas e projetos educativos sérios e bonitos. Aprendi que felizmente, existem opções.

Então se você se preocupa com o que seus filhos vão aprender no colégio e como eles vão aprender, estude bastante os colégios disponíveis. Felizmente, tive outras fontes para me educar e perceber os absurdos pregados naqueles prédios. Em uma cidade pequena, como a que vivi durante a infância e adolescência, as opções podem ser escassas e todo cuidado é pouco. Pra essa gente, verdade, educação e vida podem ser meros pontos de vista e em tempos difíceis como os atuais, onde o conhecimento é distorcido e Deus voltou a ser bandeira na política, isso pode nos levar a lugares extremamente perigosos.

Amém?

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Agradeço aos poucos, mas importantes professores que fizeram bons trabalhos individuais nessa jornada. O trabalho de vocês compensou muito do que faltava à instituição.

Saudades e nostalgia imensa dessa época. Pelos amigos, pela idade, pela vida. Não pela instituição.

O texto é uma representação da experiência do autor. Se você discorda, tudo bem. Provavelmente você já tem uma boa opção de onde colocar seus filhos para estudar futuramente.

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Gabriel Lima

Publicitário, empresário. Mestre em Gestão da Economia Criativa pela ESPM Rio, sócio e diretor da Agência Pivot.